DONA CLARICE: a resiliência e a generosidade que movem a Requinte

Senhora posa para foto com xícara nas mãos

O cheiro do pão de queijo, recém-saído do forno, tomava conta da sala de jantar. Poderia ser deliciado com doce de leite, geleia de uva ou requeijão. Mesmo tão atrativo, ele tinha bons concorrentes ao seu redor: o bolo de laranja mais famoso da cidade, uma goiabada pedaçuda e um mix de comer rezando, formado por polenta na chapa, salame e queijo. A mesa farta foi feita por quem sabe receber bem, em casa ou em seus amados negócios, a Requinte Panificadora – ou Pani, para os mais chegados – e o Restaurante Donna Clarice. Com o mesmo carinho que serve cafés da manhã, da tarde e almoços aos seus clientes, Dona Clarice Meneghetti abriu as portas de sua casa e das memórias. 

A história de Dona Clarice começou em Cascavel. Os pais, Dorval e Joana Amaral, vieram tentar a vida e aqui criaram os 6 filhos, entre eles, uma única menina. A primeira morada, na década de 50, foi onde hoje é a Rua Paraná, na área central, mas que na época em nada parecia com a via movimentada da atualidade. No mesmo ano da chegada, o município foi emancipado e já era visto como uma terra de muita prosperidade. 

O lugar que abriga hoje o Estádio Olímpico Regional ficava na zona rural do município. A família comprou uma das várias chácaras que ficavam ao redor do embrião de cidade e de lá tirava o sustento. “Agora emendou tudo, mas antes lá era longe da cidade. A gente vinha de charrete para comprar o que precisava”, conta. 

A abundância da propriedade dava gosto: tinha ovelha, galinha, gado, porco, diversas plantações. Faziam banha e salame. Mas isso exigia muito trabalho e, desde cedo, Dona Clarice já era o braço direito da mãe em diversas funções.

“Com 10 anos de idade, meu pai e meus irmãos iam para a roça e eu ia para as panelas. Aprendi a cozinhar, fazer pão, cuca”, descreve.

As habilidades adquiridas de forma tão precoce foram a base da grande empresária que Dona Clarice se tornaria décadas depois. 

Conexão Cascavel – Foz do Iguaçu

Aos 17 anos, Dona Clarice encontrou o primeiro e único amor de sua vida. Leonir Meneghetti conquistou a jovem e linda moça de olhos claros e logo se casaram, indo morar na área urbana. Interessada e decidida a ajudar o marido a crescer, estava sempre disposta a contribuir no que precisasse, dentro ou fora de casa. Mantendo a família em Cascavel por um tempo, o marido montou uma distribuidora de frios, em Foz do Iguaçu, trabalhava lá de segunda a sexta e voltava para casa nos finais de semana. “Chegou um tempo em que essas idas e vindas já não eram viáveis. Ele começou a ter muita demanda, porque a população aumentou com a construção da Usina de Itaipu, então, ele achou melhor irmos todos para lá”. 

O casal teve três filhos: Adriana, Márcio André e Alessandra. Dividindo-se entre a maternidade e o trabalho fora de casa, Dona Clarice também se tornou empreendedora. Nas mais de duas décadas em que permaneceram em Foz do Iguaçu, tiveram três panificadoras. Nos negócios, ela colocava à prova seus dotes culinários e o seu jeito de atender, que se tornaria uma marca pessoal. “Eu fazia de tudo um pouco, em uma das panificadoras eu fazia até sorvete. Ajudava nos doces, na cozinha, não parava um segundo. Gostava muito do que estava fazendo”, recorda. 

Por lá, já adoçava paladares com a sua especialidade: o bolo de abacaxi com coco ou torta mineira, para quem deseja fazer o pedido na Requinte, já que a receita segue no cardápio até hoje.

“Fazia desde mocinha essa receita, foi inclusive o bolo do meu casamento. Sempre fez sucesso. Nos aniversários dos filhos e sobrinhos, só dava ele”. 

mesa farta de café da manhã

Perdas, solavancos e recomeços

A virada de século trouxe transformações inesperadas e dolorosas para a família de Dona Clarice. O filho, Márcio André, há quatro anos lutava contra um câncer. Por um bom tempo, manteve-se ativo, seguiu trabalhando com o pai, mas em 2001 a doença avançou e não houve mais o que ser feito: ele faleceu em 17 de junho daquele ano, aos 27 anos de idade. “É uma dor que só quem passa sabe. Perder um filho é a maior tristeza que uma mãe pode ter. É devastador!”. 

O sofrimento foi intensificado porque não se tratava do único problema de saúde da família. O marido de Dona Clarice há anos convivia com uma doença no fígado, que também evoluiu para um câncer. Quando perdeu o filho, Leonir já estava bastante debilitado. Prevendo o agravamento da doença e desejando que a esposa e as duas filhas pudessem ter um recomeço em outro lugar, na tentativa de deixar parte da tristeza para trás, ele propôs que fossem embora de Foz do Iguaçu. 

Existia apenas o desejo de sair daquele cenário, sem nada acertado. O segundo semestre do ano foi de muita busca e pesquisa, tentando encontrar onde a família poderia investir seus recursos a partir dali. Surgiram oportunidades, até mesmo em outro estado, mas o interesse era pulsante pela possibilidade de retornar a Cascavel, onde tudo começou. 

Na esquina entre as ruas Mato Grosso e Afonso Pena, já existia a Panificadora Requinte e ela estava à venda. Por ser bem localizada, contava com um grande movimento, mas era bem pequena: se restringia ao local onde ficam o caixa, as gôndolas e a cozinha. “Depois de muita negociação, conseguimos chegar a um valor que poderíamos nos comprometer e fechamos a compra com tudo do jeito que estava”, relembra Dona Clarice. No dia 23 de dezembro de 2001, a Panificadora Requinte abria sob nova direção. 

A felicidade pela conquista, porém, se misturava ao luto da perda recente e as frequentes internações de Leonir. Ele pouco pôde ver a prosperidade do novo negócio: no dia 16 de março de 2002, faleceu. “Enterramos meu marido exatamente 9 meses depois da morte do meu filho. Foi um período muito doloroso”. 

Porta retrato com foto de casamento de casal

A dor transformada em trabalho

“O trabalho me reergueu”, enfatiza Dona Clarice. Por muito tempo, manter as portas da Pani abertas foi a única motivação de sua vida. Uma filha estudava e a outra trabalhava em Foz do Iguaçu, então, ela passava a semana toda apenas com a mãe, que morava com ela. A panificadora era o seu refúgio.

“Tomava café, almoçava e jantava lá. No começo, abríamos às 6h e fechávamos às 22h. Depois que eu fechava a porta e encerrava o expediente, eu chorava, chorava. Me entreguei ao trabalho para não ser vencida pelo sofrimento”. 

Toda a entrega da resiliente Dona Clarice ganhou, aos poucos, reciprocidade. O espaço que já era famoso, passou a conquistar ainda mais reconhecimento pela proprietária prestativa, cuidadosa e atenciosa, que foi fazendo amizade com a cidade. Logo, uma primeira ampliação foi necessária, ganhando mais espaço para aquele café de padaria gostoso e demorado, mas, ainda assim, mantendo um atendimento que também está a postos para servir os mais apressados. 

Assim, a Requinte tornou-se um relevante ponto de encontro e um lugar em que as pessoas se acostumam e desejam frequentar. “Já vi muita coisa acontecer aqui: celebrações de conquistas, fechamentos de negócios. Também acompanhei crianças que vinham com os pais e, hoje, já vêm com os seus próprios filhos, que cresceram vindo aqui. Eu fico muito feliz, principalmente pelo carinho com o qual os clientes me tratam. Têm os que sempre me procuram para dar um abraço, me dão presentes. Isso é gratificante”. 

Por trás de tudo, sempre esteve Dona Clarice. Há alguns anos, ela conta com a filha Alessandra, que assumiu as principais funções, mas nunca deixou de acompanhar todos os processos. Sabe o café que é servido logo nas primeiras horas do dia? Ela é quem aprova e dá seu selo de qualidade para que possa ir para o balcão. É um trabalho de quem chega cedo: às 5h da matina, Dona Clarice anda menos de uma quadra e destranca a Pani para um novo dia de trabalho – uma missão que ela faz questão de executar. 

O amor pelo que faz está até mesmo na vista que Dona Clarice tem da janela do seu apartamento. Da sala, ela vê a construção amarronzada e o emaranhado de grades que deixam o seu desejo de vida e movimento ainda mais potente. Durante a pandemia, por um longo período, o contato visual com a Pani foi o único que ela pôde ter. Com as exigências dos novos tempos, ela voltou, mas passou a não atender mais o caixa, que foi automatizado. “Eu e o computador não nos entendemos muito bem”, brinca. Outras funções, porém, nem adianta as filhas tentarem tirar: as compras para o estoque, por exemplo, são feitas por ela, cheia de pique e orgulho. 

idosa contempla a vista da janela

Generosidade: um valor inegociável

Dizer “não” é uma dificuldade para Dona Clarice. Até para os fornecedores que vêm comercializar algo que às vezes ela nem precisa no momento, a palavrinha é difícil de sair. Se o cliente deseja algo que não está disponível, ela trata de acionar a equipe para dar um jeito. “A ideia é que ninguém saia insatisfeito daqui”, esclarece. Como exemplo, ela cita um caso recente de um rapaz que queria um sanduíche natural, mas não tinha. “Mostrei as outras opções da vitrine, ele também não queria. Peguei então todas as orientações com ele, fui na cozinha e pedi pras meninas montarem do jeitinho que ele queria. O rosto chateado dele deu lugar a um sorriso bem feliz e ele foi embora todo faceiro”. 

Toda a boa vontade, porém, às vezes causa algumas saias justas, como na seguinte situação: uma cliente ligou e pediu para reservar uma mesa para seis pessoas, mas a conduta da Pani é não reservar, devido ao grande fluxo de pessoas, e a funcionária que a atendeu deu essa informação. No mesmo dia, outra cliente fez o mesmo pedido, a diferença foi que Dona Clarice atendeu e, mudando as regras do jogo, disse que seguraria a mesa para ela, sim. A cliente que teve o pedido negado chegou antes, viu a mesa vazia e já iria se acomodar com o grupo de amigos, mas foi avisada pelo garçom de que os lugares já estavam reservados. Após o constrangimento, perguntaram a Dona Clarice o que iriam falar para a cliente. Ela respondeu de bate-pronto: “Fala para ela pedir para falar comigo da próxima vez que eu guardo lugar para ela, ué”, falou em meio a gargalhadas.

O ato, que pode parecer rebeldia, na verdade traduz um valor inegociável da Requinte: a generosidade. Do coração benevolente de Dona Clarice, essa característica transborda e se espalha para a equipe, os fornecedores e os clientes.

“Eu sinto que é sempre possível fazer mais pelo outro, aí eu faço”. 

Cuidado com os outros e consigo mesma

Não imagine que esbarrará com Dona Clarice sem se arrumar nas primeiras horas do dia. A simplicidade do trato com o outro fica ainda mais bonita com o cuidado impecável que tem consigo mesma. É um hábito que cultiva desde mocinha, porém, enquanto morava na chácara, se virava sozinha em casa. Depois que casou, ir ao salão passou a ser rotina. “Faz 20 anos que eu tenho um horário fixo, aos sábados, no mesmo salão. Sempre trabalhei muito, mas deixava claro que sábado depois do almoço eu tinha esse compromisso comigo mesma.  Faço pé, mão e cabelo. Não gosto de ficar sem fazer. Faz bem para mim, gosto de me arrumar”. 

Durante a semana, ela mantém tudo alinhado. O cabelo curto está sempre escovado e penteado, mesmo com as toucas que precisa usar na cozinha da panificadora. Roupas sóbrias elegantes e uma maquiagem básica compõem seu estilo. E o arremate fica por conta das inseparáveis jóias. “Levanto de manhã, já me arrumo e coloco os brincos e as correntes, não fico sem. As pulseiras nem tiro para dormir”. 

Os cuidados com a aparência também se estendem à saúde, apesar de ela gostar de esquecer que tem algum problema. Faz pilates, hidroginástica e fisioterapia, além de trabalhar de segunda a sábado, mantendo-se ativa. Ela tem vitiligo, doença que hoje está controlada, e também luta contra o mal de Parkinson. “Nem me lembro que tenho Parkinson. Quando vem essa lembrança e dá uma baixada na bola, eu vou costurar e esqueço”. 

idosa com xícara de chá admirando a vista da janela

Uma homenagem saborosa

A Requinte, há alguns anos, passou a servir almoços em seu espaço. Tudo muito gostoso, com muita procura, mas, mesmo aumentando mais alguns metros de estrutura, ainda faltava espaço para toda a demanda. A necessidade fez surgir o desejo de expandir os negócios do grupo. Recentemente, Cascavel ganhou uma nova e ampla opção para suas refeições: o Restaurante Donna Clarice

Ansiosa pela novidade, ela nem sonhava que ganharia essa homenagem. Foi surpreendida na inauguração, com uma baita fachada que esculpe parte de sua história. O novo comércio da família também conta com um empório, com produtos importados, charcutaria, queijos, geleias e massas. “Precisávamos de mais espaço, acima de tudo, para atender melhor o nosso cliente. Esse segue sendo o nosso objetivo”. 

Um futuro leve

Para quem trabalha muito, férias, muitas vezes, são artigos de luxo. Para Dona Clarice, era assim. Ela considerava quase impossível que ela e as filhas pudessem se ausentar do trabalho ao mesmo tempo para um tempo de descanso. Mas nada como um lembrete da vida para promover mudanças. Em 2014, o câncer chegou também para Dona Clarice. A doença surgiu entre o rim e o baço. Ela passou por cirurgia e não precisou de quimioterapia, mas o susto foi suficiente para despertar um desejo de aproveitar mais a vida. 

A Pani, que ficava aberta de domingo a domingo, passou a funcionar só de segunda a sábado. Os domingos passaram a ser de descanso e de encontro entre as filhas e a mãe num ambiente menos corrido. Os cafés da manhã de Dona Clarice, o mesmo descrito na abertura do texto, se tornaram rotina e lugar de bate-papo, quase se esticando até o almoço. “Minhas filhas e eu temos uma relação muito boa. A Laura, minha neta, também. Então, apesar de passarmos a semana juntas, esse momento virou sagrado para nós”, relata. Os momentos dominicais deixaram ainda mais fortes os laços entre a família formada por quatro mulheres. A mãe, as filhas e a neta se tornaram o suporte umas das outras. 

As viagens ocuparam outro espaço importante no calendário da família.

“Entendi que a vida passa e o que ficam são essas memórias”.

O agradecimento pelo restabelecimento da saúde depois do câncer foi no Vaticano, destino importante para quem tem a fé como guia, sendo devota de Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Outro passeio que ela lembra com carinho foi uma viagem para Gramado, a primeira que ela propôs. “Falei às 10h da manhã e às 12h as meninas já tinham reservado tudo para eu não desistir. Fomos de carro e foi um momento maravilhoso e marcante”. 

Além de formar a neta Laura, que mostra ter herdado os dotes para a cozinha da avó, Dona Clarice tem como sonho viajar mais. Já tem até um destino ideal escolhido: Mendoza, na Argentina. “Quero ir de carro, com a família toda, como se fosse uma excursão. Acho bonito ir olhando as paisagens, sem pressa”, encerra. Uma lição bonita sobre quem, apesar dos percalços, sabe apreciar a viagem e a vida.

Foto com três gerações de mulheres


A reportagem com a empresária Clarice Meneghetti é a terceira de quatro histórias inspiradoras que você vai conferir no Página Laranjas durante uma série especial em homenagem ao mês das mulheres. Até o fim de março, os textos do nosso blog serão focados nessas figuras tão emblemáticas do Oeste Paranaense: mulheres talentosas, corajosas e autênticas que fazem nossa região ser conhecida Brasil afora. Fique de olho nas nossas publicações porque nas próximas semanas teremos a última reportagem: Nereide dos Anjos.

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