Inusitado. A maior indústria de fios do Paraná está localizada num território onde há mais de 30 anos não se vê sequer um pé de algodão, a principal matéria-prima usada na linha de produção. Apesar de solo e clima favoráveis, os agricultores da região desistiram de investir na cultura. No Oeste do Estado, as últimas plumas foram colhidas em 1989. O algodão simplesmente foi embora. Parece loucura, mas foi no deserto do algodão que a Fiasul nasceu e fixou morada. Toledo é a cidade onde tudo começou.
Tempos difíceis
A trajetória da indústria de fios tem tudo a ver com a economia do país e com um momento de frustração vivido pelas cooperativas.
Em 1994, o Plano Real havia sido instituído. E na prática, tudo o que valia uma Unidade Real de Valor (URV) passou a valer R$ 1, mais que o dólar. A URV surgiu tão forte que na época 0,80 URV equivalia a US$ 1. Este fenômeno enxugou o dinheiro do mercado, o crédito ficou escasso. Foi um tempo em que as empresas não conseguiam pagar suas dívidas e muitas entraram em situação de insolvência. Foi o caso da Coopagro, em Toledo, a principal cooperativa instalada na cidade.
A Coopagro não resistiu, os cooperados se desmotivaram e na assembleia de decisões importantes, somente 120 compareceram e representaram 4.500 sócios. O grupo optou pela liquidação da cooperativa para vender o que fosse possível, pagar as contas e receber quota-capital. Mas houve um senhor impasse no meio do caminho. Todos os 1.700 funcionários entraram com ação trabalhista e os ativos vendidos não foram suficientes para quitar as indenizações.
O município também foi duramente impactado, a ponto da Prefeitura de Toledo ficar seis meses sem conseguir pagar o salário dos servidores devido a gravidade da crise.
Uma história de muitos personagens e máquinas paradas no tempo
Os bens da cooperativa estavam se esvaindo, mas em meio ao caos, as máquinas de uma fiação desativada e esquecida chamaram a atenção de um homem, que inconformado foi até o gabinete do prefeito Albino Corazza Neto, expressar a indignação com o “desperdício”.
O homem era Augusto José Sperotto, contador de profissão e empreendedor por natureza (mas isso ele ainda não tinha noção). A conversa foi assim: “Tem uma empresa parada aqui em Toledo e é um crime”. O prefeito respondeu: “Sperotto, já imaginou se toda empresa (fiação) que quebrar eu estatizar? Você é empresário, é você quem tem que tocar! Fala com o secretário de agricultura”.
Sperotto acatou.
Rainer Zielasko, gaúcho de Santa Maria (RS), entra em cena. Ele já havia adotado o Paraná como o lugar escolhido para viver. O engenheiro agrônomo era também agricultor e tentava se equilibrar, se arriscando em 300 alqueires de terra. A crise havia afetado a atividade.
“Enxugou o dinheiro e me vi em grande apuro. Na época do plantio, eu precisava de 50 sacas de soja para pagar o banco. Quando eu colhi precisava de 130. Pensei em vender as colheitadeiras e pagar a conta, mas não tive sucesso. Ninguém comprava, não tinha valor. Quebrei, beijei a lona”, revela.
Rainer também era o secretário de agricultura de Toledo e foi procurado por Sperotto, conforme a orientação do prefeito. Resultado? Nasceu a parceria. Juntos, o contador apaixonado por números e o agrônomo, daqueles bem técnicos, abraçaram a causa, decidiram investir na retomada da fiação, paralisada há dez anos.
Sperotto era acostumado com o mundo contabilístico e da burocracia. Rainer só tinha experiência com o serviço público. A primeira questão a ser resolvida foi encontrar alguém para administrar o negócio. “Eu jamais deixaria o meu escritório de contabilidade e Rainer não estava disposto a deixar suas atividades. Assim chegamos até José da Luz Uchôa, que havia presidido anteriormente a Cotriguaçu”, conta Sperotto. Uchôa topou e hoje é um dos sócios. Depois dele, o advogado Flávio Furlan completou o quadro dos desbravadores de sucesso.
O segundo desafio foi angariar investidores. “A nossa meta era conseguir 100 nomes. Peguei meu “Fucão” e parti para os distritos. Quase fui enxotado, mas alguns conhecidos toparam. A duras penas juntamos 21 pessoas. Constituímos uma LTDA e a fiação foi arrendada. Pagávamos o aluguel e o salário dos funcionários para a comissão liquidante da cooperativa, este era o nosso compromisso”, relembra Rainer.
O que deu coragem em assumir?
Segundo Sperotto, não foi coragem. Foi falta de opção. “Eu fazia parte da Associação Comercial e as empresas escorriam pelos dedos, foram fechando, se transferindo e nós torcendo por um milagre”.
Abrimos o baú
Ao longo da entrevista, a conversa foi ficando descontraída e rica em detalhes.
Sperotto: “Parecia que o cara lá de cima estava testando a gente”.
Rainer: “Sim, testou muito”.
Depois de seis meses de trabalho, os desafios continuavam. O algodão vinha de outras cidades e estados. As máquinas estavam a todo vapor, mas no governo de Fernando Henrique Cardoso houve uma inversão de valores no mercado. Foi mais uma apunhalada. Importar o tecido pronto se tornou mais barato do que produzir fio. Descapitalizados, não havia o que fazer. “Fechamos a fábrica. Foi um zumzumzum na cidade”, recorda Sperotto.
O primeiro ano foi sofrido, a despesa era alta. Tudo o que ganharam nos primeiros seis meses, perderam no semestre seguinte. Sem alternativa, o arrendamento foi suspenso e restou uma dívida de R$ 120 mil para um fornecedor.
Foram dias e dias de ansiedade, de monitoramento constante, até que uma mudança importante aconteceu. O preço do algodão voltou a subir e lá foram os empresários para mais uma aventura. Desta vez, retomaram as atividades com êxito.
“No primeiro mês nos empolgamos, tivemos quase um Fusca de lucro. Faturamos R$ 17.500,00 e ficamos faceiros. Pensamos: ‘estamos feitos, ficamos ricos!’ (gargalhadas)”, comenta Rainer.
Era um jogo de estratégia. Depois de tantas idas e vindas, uma luz no fim do túnel surge em forma de proposta por parte do banco para financiar a aquisição da fiação por assunção de dívida com prazo de dez anos para pagamento. A ideia agradou, mesmo diante da maré de dificuldades.
E o empreendedorismo tem muito disso. “Era uma decisão difícil. Estávamos comprando um monte de máquinas velhas, assumindo 290 funcionários que produziam 280 toneladas por mês de fio”. Os sócios foram desafiados.
Sperotto: “Ouvimos do gerente do banco: vocês não têm um gato para puxar o rabo e vão assumir isso?”
A resposta veio de Uchôa, acostumado a lidar com números grandes: “tem uma coisa, temos a competência e a capacidade que uma empresa precisa. Caiu a ficha. Temos capacidade de gestão”.
Rainer: “O valor venal era de R$ 15 milhões e foi a leilão em segunda praça por 60%, exatamente R$ 7,614 milhões. Tínhamos medo que viesse alguém de fora, foi muito emocionante. Do-lhe uma! E todos os funcionários lá no asfalto esperando. Do-lhe duas! Ninguém se manifestou. E aí foi aquela gritaria lá fora, de todos os funcionários vibrando de alegria. Saímos dali e fomos pescar. Na volta, na hora de assinar, dos 21 investidores, sobraram dez. Ninguém queria dar garantia. Encaramos”.
Aos poucos as coisas foram caminhando. O ritmo adotado foi de crescer, se desenvolver e reinvestir. A Fiasul adquiriu mais máquinas, reavaliou o portfólio de produtos e saiu na frente, passando a produzir fios que a concorrência não produzia.
Em 2002, houve a primeira reforma da indústria. Máquinas novas foram trazidas da Alemanha e um novo tempo se iniciava.
Incêndio transforma Parque Industrial em cinzas
Quando a Fiasul atingiu a velocidade de cruzeiro, em 2014, um grande sinistro cortou pela metade o faturamento da indústria. Sem dúvida, o momento mais difícil da trajetória. Sperotto estava na Espanha e Rainer a caminho do Mato Grosso. “Cheguei aqui no final da tarde, tinham alguns funcionários na sala, todos pretos, tossindo, cheios de carvão e metade da fábrica estava destruída. Queimou telhado que desabou por cima dos equipamentos, perda total”, conta Rainer, demonstrando no semblante e na voz a tristeza do fatídico dia.
Enquanto a fábrica era consumida pelo fogo, Sperotto estava no aeroporto, tentando voltar para casa. E foi com palavras que se manifestou ao time. Escreveu uma carta enquanto aguardava o voo para Foz. As palavras foram decisivas.
“Pessoal, já começamos do zero uma vez. Vamos encarar novamente!”.
Rainer testemunhou o impacto que o texto causou na equipe, a reação foi extremamente positiva. “Isso deu uma injeção! Os piás pegaram uma caminhonete, foram para Maringá, trouxeram cabos de aço e puxaram novas linhas de energia elétrica da nossa central porque a interligação havia queimado. No outro dia de manhã a outra unidade estava funcionando de novo”.
Empreendedores são sempre corajosos, mas não insensíveis. A fé falou alto e Deus também.
“Quando pegou fogo, sentimos a mão de Deus. No choro, me inspirei. Comecei a planejar na cabeça a construção disso tudo. Apesar da destruição, tínhamos uma energia positiva ali dentro, muito superior ao problema”, relembra Sperotto.
Sobre o dia seguinte, o cenário de destruição abalou gestores e funcionários. Um dos primeiros passos foi a limpeza, feita o mais rápido possível para que olhar para o horizonte voltasse a ser possível. Olhar para frente foi uma decisão.
O prejuízo foi enorme, o seguro pagou 90% e ao reconstruir a fábrica muita coisa foi alterada no projeto. A indenização era de R$ 42 milhões e os gastos superiores a R$ 60 milhões.
Mais uma vez, o orçamento ficou comprometido e a liderança precisou agir. “Chamamos os dez principais salários da Fiasul e jogamos limpo. Ou vamos mandar cinco embora ou vocês vão ter que trabalhar pela metade do salário durante um ano. Esta era a proposta. Pediram para pensar e ficamos muito angustiados”, contam ao Páginas Laranjas.
Para a surpresa dos gestores, o grupo voltou ainda maior, em 18 pessoas. “Vocês fizeram uma proposta e nosso grupo de dez não aceitou. Buscamos mais oito. Todos nós decidimos trabalhar um ano pela metade do salário”.
“Ali a gente teve a certeza que teríamos que seguir. Foi uma resposta”, conta Sperotto.
Posicionamento de mercado
A Fiasul está entre as dez maiores empresas de produção de fios de algodão do Brasil. Do que produz, 95% é comercializado no mercado interno.
No início eram 290 colaboradores para uma produção de 280 toneladas. Hoje são 800 funcionários e 1.600 toneladas, o equivalente a duas toneladas por mês, por funcionários.
Além do fato inusitado do início da reportagem, da indústria de fios de algodão estar sediada numa região sem algodão, há outra curiosidade. Enquanto muitas empresas sofrem por não preencher as vagas, a Fiasul quase não tem rotatividade. Os funcionários entram e permanecem, o que se explica pela valorização que a empresa tem sobre o quadro de colaboradores. “Não temos vagas em aberto. A Fiasul está com operação em três turnos e temos currículos à disposição. Procuramos ser acolhedores e aqui nosso pessoal tem o pertencimento, é muito mais do que salário”.
Nova unidade
Com trabalho, persistência e ousadia na medida certa, a indústria chegou longe. A fórmula “crescer, se desenvolver e investir” deu certo. Em abril, a Fiasul inaugura a terceira unidade e com isso o time ficará ainda maior, com 900 funcionários. A produção vai atingir 2.200 toneladas por mês, ampliando atuação no mercado.
Se a modernidade avança, o parque industrial da Fiasul acompanha. As novas máquinas representam o que há de mais tecnológico no setor, o que reforça o posicionamento da indústria no cenário nacional entre as maiores e mais importantes do país.
Os empreendedores passaram por muitos desafios, aprenderam e desenvolveram estratégias. A empresa conta com um conselho de administração com gestão profissional, orçamento e planejamento.
Logística
A Fiasul consome por dia duas carretas e meia de algodão e despacha três de fio. E durante a história toda você deve ter se perguntado como é que houve viabilidade com uma matemática de distâncias aparentemente tão expressivas, considerando ainda, o transporte rodoviário, dependente do preço dos combustíveis e cobranças de pedágio.
Agora a gente conta o segredo: a distância é absorvida porque estrategicamente a Fiasul está perto do mercado consumidor. Se estivesse no Mato Grosso, onde o algodão está, a entrega do produto final levaria dois dias. Quem está no Nordeste leva até uma semana para entregar as cargas de fio em Santa Catarina, onde estão 70% dos clientes da fiação toledana, e principal pólo têxtil do país.
Ou seja, o Oeste do Paraná é o melhor lugar!
“Não saímos daqui de jeito nenhum! Já recebemos propostas de governadores e prefeitos, mas somos apaixonados por esta terra!”, enaltece Rainer.
O tempo passou rápido, e 1994 foi um ano com grandes motivos para se tornar inesquecível. O País, apesar da instabilidade econômica, estava em clima de torcida. Enquanto a seleção de Taffarel, Dunga, Bebeto e Romário emocionava o Brasil com o tetra na Copa do Mundo…
… Augusto José Sperotto, Rainer Zielasko, José da Luz Uchôa e Flávio Furlan embarcavam em uma das maiores aventuras da vida, e se consagraram com uma baita história de sucesso.