Foi por muito pouco. Selma Miyazaki esteve bem perto de dedicar o seu início de carreira ao Japão. A partir da descendência herdada do pai, ela buscava uma bolsa de estudos no Consulado Japonês. Antes da viagem para o outro lado do mundo, porém, os ventos do destino mantiveram a médica em solo brasileiro e seu feeling fez com que escolhesse uma cidade com grande potencial para se estabelecer. Cascavel agradece.
As raízes orientais ficam nítidas não apenas no sobrenome, mas também nos traços e na disciplina de Selma. O pai veio de Hokaido, região norte do Japão e, em Apucarana, formou família. Lá, Selma e os três irmãos passaram a infância e parte da adolescência aprendendo valores que se tornaram válidos em toda a sua trajetória.
Selma é uma referência na Medicina da região Oeste do Paraná. Em Cascavel, foi uma das fundadoras do Hospital de Olhos de Cascavel, onde segue como diretora técnica médica e uma das líderes de um grupo sólido.
A Medicina
Aos 14 anos, Selma já estava na capital do estado. Foi para lá estudar o Ensino Médio e acabou ficando também para a faculdade: cursou Medicina na Universidade Federal do Paraná. A aprovação na tão concorrida graduação foi mérito de uma dedicação intensa aos estudos, que foi sempre incentivada pelo pai. “Quando via a gente dormindo nas férias, ele falava assim: ‘acorda, acorda, vamos estudar. Não pode ficar dormindo igual porco’”, conta Selma aos risos, imitando o pai que sempre manteve o forte sotaque japonês.
Da mãe, veio o jeito diplomático de fazer as coisas, sabendo dialogar e respeitar a opinião do outro. Uma forma de agir que rende a ela bons resultados desde jovem. Os irmãos já sabiam que Selma era craque na argumentação e sempre pediam que ela tomasse à frente nos pedidos ao pai. “Meus irmãos e eu queríamos fazer uma viagem à Bahia, mas ele não queria deixar. Eu fui pedir e falei: ‘pai, Salvador foi a capital do Brasil, será uma oportunidade para aprendermos História. Também é um lugar com outra cultura, outra vegetação, vamos aprender muito’. E ele respondeu: ‘então, tá bom, mas faz relatório quando voltar’”, relembra, cheia de nostalgia do quanto o pai, que já faleceu, foi importante em sua vida.
Quase no fim da graduação, seu interesse se voltou para a Oftalmologia.
“Foi no 5ª ano, no internato, quando realmente colocamos a mão na massa que comecei a gostar da especialidade. Ali, acendeu uma luz em meus olhos”.
Naquele momento, bateu a indecisão: permanecer em Curitiba para a residência, ou ir se especializar em São Paulo, no Hospital do Servidor Público?! Aconselhada pelo tio, que era anestesiologista, ela decidiu ir para um centro maior. “Foi a melhor decisão que tomei. São Paulo era outro mundo, meu horizonte se abriu lá. É uma cidade que deixa a gente mais plugado no mundo, não fica só naquele universo menor. Pude ver as coisas de uma forma mais ampla”, conta ao Páginas Laranjas.
No Hospital do Servidor Público, teve muitos de seus aprendizados oftalmológicos com o médico Tadeu Cvintal, um dos introdutores do transplante de córneas no Brasil. O conhecimento adquirido lá faria brotar no futuro outro grandioso projeto comandado por Selma, sobre o qual falaremos daqui a pouco.
Como Cascavel entrou na história
Tendo decidido permanecer no Brasil, o Paraná era uma certeza, mas Selma estava dividida entre o norte, mais próxima de onde passou sua infância, ou o oeste. Mais uma vez, ouviu o experiente tio, que atuava em Toledo, e veio para Cascavel, em 1991. “A perspectiva de crescimento nos animou a vir para cá”.
A primeira oportunidade foi no Instituto Bom Jesus. Foram dois anos de dedicação até que o empreendedorismo aumentou o volume do chamado. Selma se juntou a outros dois colegas, um deles o Dr. Randal Dacome, seu sócio até hoje, e abriu o primeiro espaço próprio, na Rua Riachuelo. “Começamos assim: eu tinha um instrumento, o outro, um aparelho, e assim demos início juntando o que cada um tinha”.
Não demorou muito para a ideia deslanchar e precisar de mais espaço. Em 1996, se mudaram para o endereço: Rua Minas Gerais, 1986, onde até hoje está o Hospital de Olhos de Cascavel. “Sempre almejamos ter outras pessoas com a gente, outros sócios, mais especialidades, para que as pessoas pouco precisassem ir para outros centros”, destaca. A projeção se concretizou, com um quadro que já chega a 20 oftalmologistas, e ainda em crescimento. Isabela, filha de Selma, estreia em 2024. A caçula, Mariana, também seguiu os passos da mãe e está no 6º ano de Medicina.
Uma referência
O crescimento foi maior que o esperado, e o Hospital de Olhos de Cascavel se transformou em uma referência no atendimento oftalmológico do Paraná. A unidade recebe em média 300 pacientes por dia e conta com mais de 130 colaboradores. Tratamentos modernos e equipamentos de ponta fazem parte da estrutura para diagnóstico, prevenção e tratamento de diversas doenças dos olhos com o máximo conforto e cuidado no atendimento.
São mais de 3600 m² que logo vão aumentar, já que o Hospital passa por uma ampliação. São cinco centros cirúrgicos, unidade de emergência, centro de diagnóstico por imagem, ambulatórios clínicos e cirúrgicos e uma estrutura variada de aparelhos para a realização de exames e procedimentos.
Selma, além de dirigir a equipe com sua bagagem médica, também está sempre buscando se fortalecer como gestora.
“Em 2015, fiz um MBA em Gestão de Negócios de Saúde. Em uma estrutura como essa, há muitos aspectos a serem observados para oferecer toda a segurança aos pacientes e aos colaboradores. Envolve gestão, parte financeira, recursos humanos, negócios. Temos que estar preparados para isso”.
Banco de Olhos
O brilho no olhar fica mais intenso quando Selma fala sobre o Banco de Olhos, entidade sem fins lucrativos vinculada ao Hospital de Olhos. A ideia nasceu em 2006, e é hoje o principal órgão de coleta e preparação de córneas da região. Por meio do trabalho realizado, muitas pessoas tiveram a oportunidade de receber uma doação de córnea e recuperaram a qualidade de vida.
A criação do setor se deu após os profissionais do Hospital de Olhos observarem a dificuldade dos cidadãos da região em conseguir um transplante de córneas. Desde o início dos trabalhos do Banco de Olhos já foram contabilizadas mais de 6.600 doações. “É o lado social do Hospital. Um lugar onde as pessoas trabalham por um ideal pessoal também, além do profissional. É muito bonito. Somos um dos poucos bancos de olhos do país ligados a uma estrutura particular. Entendemos a importância desse trabalho, já que as córneas doadas, se não forem utilizadas na região, acabam indo para outros estados”, pontua.
Além de manter o local e realizar os procedimentos, o Hospital é ativo na conscientização, para que as famílias permitam a doação após a perda de um ente querido.
“A população já está começando a adquirir essa consciência. Precisamos sempre explicar para as pessoas, elas têm medo do desconhecido, por isso, precisamos aproveitar todas as oportunidades para falar sobre a relevância do que estamos fazendo”.
O jeito Selma
“Teimosinha” é o primeiro termo que Selma usa para se descrever, com um misto de vergonha, mas também satisfação, porque sabe que boa parte do que conquistou veio na base de muita insistência e, como queiram chamar, teimosia. Há também a preocupação com os detalhes, o que ela considera uma qualidade e um defeito ao mesmo tempo. “É bom por um lado, mas preciso me desprender um pouco, porque vejo que isso me prejudica em alguns aspectos”.
Em busca de entender melhor suas origens e de autoconhecimento, ela e os irmãos fizeram uma viagem ao Japão, em 2016. Ao chegar na região em que o pai morou, o choro veio de forma desenfreada. “Ali, eu entendi muito sobre mim, sobre quem eu sou. Muito do meu pai está em mim, esse meu jeito de querer tudo certinho, metódica, e eu me orgulho disso”, revela.
Se for para escolher um verbo para defini-la, “trabalhar” é uma boa opção. Selma tem 58 anos e segue em ritmo acelerado. “Entre uma cirurgia e outra, comi uma banana e um sanduíche, foi o meu almoço. Mesmo com minhas filhas pequenas, quis tocar minha carreira, por entender que isso faz parte de quem eu sou, que era tão importante quanto ser mãe. Ver hoje que elas entenderam isso e, inclusive, escolheram a mesma profissão, me deixa realizada”. O gás todo vem da prática constante de exercícios: pilates e musculação também cabem na apertada agenda.
Como líder, ela foi adquirindo jogo de cintura com o tempo. Lembram da diplomacia que foi herança da mãe? Ela é sempre bem-vinda em um ambiente de trabalho tão vasto e múltiplo.
“Todas as pessoas são diferentes no jeito de lidar. Com a maturidade, você aprende a não confrontar. Cada um tem sua história, suas marcas, suas lutas e aí você vai conhecendo, descobrindo e consegue acolher a pessoa, acaba amaciando aquela situação, a pessoa sente aquele acolhimento”.
Quando se trata de pacientes, então, a generosidade e a delicadeza são os principais métodos empregados. Por isso, não é difícil encontrar gerações que são atendidas por ela, sempre com um elo forte. “Não quero simplesmente que a pessoa venha resolver seu problema clínico. Tenho alguns pacientes que atendo desde criança, já cresceram e são pais. Sei da vida pessoal de muitos deles, conheço os infortúnios, as conquistas. A consulta fica mais longa, mas isso ajuda a me realizar também”.
A sensibilidade já era uma de suas características, mas a vida trouxe algumas provas que fortaleceram a empatia. “A minha filha mais velha nasceu com uma má formação congênita séria no pescoço. Ela teve que fazer três cirurgias: com 23 dias, 8 meses e com 1 ano e 8 meses. Cirurgias delicadas, com anestesia geral, e não tinha especialistas que faziam aqui. Isso me serviu para quê? Quando vem uma pessoa aflita, com o filho com um problema ou ainda com receio de uma anestesia geral, eu me coloco no lugar delas. Eu sei o que é essa angústia e posso ajudar as pessoas além da questão técnica clínica. Essas dificuldades da vida podem nos deixar mais amargos, mas também podem nos tornar pessoas melhores”, finaliza, feliz ao olhar para o que já construiu e esperançosa com os planos que têm para o futuro. Cascavel agradece.